O espeto cheio de carne, colocado a frente de uma mocinha tão magrinha com olhos grandes e pretos, fixos naquela enorme pedaço de picanha, o suor escorria de seu rosto como se a carne saísse de seus poros, ela gentilmente diz não com a cabeça e consegue suspirar um “Obrigada”. O garçom tira de sua frente o espeto deixando transparecer a sua decepção através de um leve aceno de cabeça e espremendo os lábios, como quem aprisiona um desaforo para que não escape de sua boca, olha nos olhos da moça. Ficam os dois olhando um nos olhos do outro. Um encarando o outro. Um desafiando o outro!
Ele: garçom legitimamente gaúcho, aliás o último garçom realmente gaúcho daquela churrascaria de rodízio em São Paulo. Estava condenado a servir carne para moças magrinhas que só querem saber de comer picanha, e coração de galinha. “Eu aceito coraçãozinho suspiram ao pedir”. E quando ele passa com o espeto de cupim todas elas fazem cara feia e não querem saber da sua carne. Por que o único gaúcho fica sempre com o espeto que as moças não querem? Ele passava primeiro com o cupim, depois com o javali e finalmente com o ultimo insulto a moças tão delicadas; a lingüiça calabresa. Naquele dia ele falou com o gerente e disse que se não ficasse responsável pelos espetos de picanha e de coraçãozinho se demitiria. Ao gerente não sobrou alternativa a não ser fazer a vontade de um garçom tão temperamental.
Ela: mocinha paulista e magrinha não era adepta de nenhuma dieta, era como muitos chamavam: “Magra de ruim”, apesar da ruindade na magreza tudo o que ela queria era agradar os outros. Ela era uma “agradadora” incurável, para ela um olhar que mostrasse qualquer sombra de decepção era como se um espeto atravessasse o seu coração. Sentada a mesa do restaurante após comer sua salada com direito a alface, palmito, azeitona e queijo viu passar o garçom gaúcho com o espeto de coração aceitou contente e pediu que a servisse. O garçom feliz por pela primeira vez conseguir agradar uma mocinha paulista começou a servir, desceu pelo espeto seis de uma vez e logo mais seis, a mocinha fez um gesto com a mão, mas ele continuou e desceu mais seis pelo espeto, ela pediu que parasse e ele parou, logo após descer mais alguns e acabar com o espeto inteiro.
Ela começou a comer aquela montanha de corações, aceitou de outros garçons um pouco de batata frita, um pedaço de filé mignon, e até uma fatia de maminha. Quando o Gaúcho voltou a sua mesa trazia o seu grande trunfo, o espeto de picanha, ela aceitou uma fatia, ele serviu quatro e continuou servindo até que viu que ela só havia comido metade dos corações, ele deu um suspiro e olhou bem nos olhos da moça com um ar de reprovação. Ela sentindo toda aquela repressão comeu não só todos os corações como também a picanha e tudo mais que havia no prato. Nem havia terminado direito e lá estava o garçom novamente, desta vez com um espeto de costelinha e um olhar ameaçador. Ela nem pensou em recusar. Ele serviu quatro de uma vez e só deixou a mesa quando ela começou a comer. Enquanto servia outras mesas ele lançava olhares vigilantes pra a mesa dela, e ela comia temendo qualquer reprovação dele. Assim ela comeu mais picanha, mais coração, mais costelinha e outras carnes que o garçom trazia especialmente para ela. Já não sabia mais quantas vezes o espeto de picanha havia passado, tinha dor nas suas costelinhas e o coração já não tinha mais espaço para suspirar.
E então ele estava lá imóvel, olhando nos olhos da moça que recusava a picanha. Como ela podia recusar a picanha? Logo a picanha? Chega ele não aceitaria mais desaforo de menininha fresca!
Ela não tirava os olhos fixos do garçom, agora ela tinha decidido e não mudaria de opinião. Chega ela não aceitaria nem mais uma fatia! Não tinha mais medo de olhares e muito menos de espetos, nem mesmo dos que atravessam picanhas, costelas e corações!
Um olhava fundo nos olhos do outro. Nenhum dos dois estava disposto a ceder. E todo o restaurante naquele exato minuto parou de respirar olhando aquela cena e imaginando quem sairia vencedor daquela batalha. Ninguém entendia exatamente o que estava acontecendo ou porque os dois se encaravam daquele jeito, mas sabiam que alguém sairia vencedor. E enquanto um tentava vencer o outro num duelo silencioso, o que ninguém esperava aconteceu, a pressão no salão era tão grande que as bombas do carrinho de sobremesa não agüentaram e explodiram. Não houve tempo para ninguém se proteger com guardanapos, pratos ou bandejas. Todos ficaram cobertos com destroços de chocolate. O rapaz do carinho de sobremesa no meio daquele desastre perdeu a direção, um pudim voou pelo espaço e acertou uma senhora na cara, tortas e bolos derrapavam pelo chão, criando uma pista escorregadia por onde o carrinho deslizava sem freio até acertar o Gaúcho. Ele caiu desarmado no chão, seu espeto saiu voando pelo salão com uma melancia espetada na ponta. O espeto acabou aterrissando com segurança em uma mesa vizinha, ninguém ficou ferido, a melancia entretanto despedaçou-se inteira.
O gaúcho agora vive uma vida mais tranqüila, trabalha em um rodízio de pizzas. De mussarela, em mussarela ele vai levando a vida. Desistiu de agradar as moças paulistas. Agora seu passatempo preferido é rir e imitar a cara que elas fazem quando ele passa com a pizza portuguesa, com aqueles ovos cozidos enormes. Ele coloca a pizza bem na cara delas, elas entortam os lábios, franzem a testa e viram a cara. Mas ele não se importa que nenhuma delas queira saber de seus ovos.
Até semana que vem!
Sílvia Lhullier
Um comentário:
Oi Silvia!
Recebi seu e-mail com o endereço do blog e vim aqui checar... adorei seus textos! Acho que me tornarei uma leitora assídua do Ave Struz... hehehehehehe....
Bjos,
Carol Simões
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